Por Diogo Braga e Carolina Damas
Entrevista a Hélder Silva
Entrevista
“Sempre que fui para zonas de conflito nunca voltei a mesma pessoa”
Jornalista, pivot, editor executivo e responsável pela agenda do operador público. Estas são algumas das funções de Hélder Silva. O “jornalismo na guerra”, como diz, é um dos trabalhos pelo qual é distinguido. Já esteve em locais de conflito como o Iraque, na Venezuela e na Ucrânia.
Começou a reportar conflitos com a Guerra do Iraque. Recentemente esteve na Ucrânia. Nestes anos, o que mudou no jornalismo de guerra?
Não gosto dessa expressão do jornalismo de guerra, eu prefiro jornalismo na guerra. São coisas diferentes. Porque o jornalismo de guerra não deixa de ser jornalismo, acontece é numa zona de conflito. Há uma série de constrangimentos, o que faz com que não seja um trabalho muito semelhante àquele que fazemos no nosso dia a dia. Quando somos enviados a um país em situação de conflito, caímos de paraquedas num local que nos é desconhecido. Enquanto aqui temos as nossas fontes de informação, num país em guerra não temos isso. Nesse contexto, ganha relevância a figura do fixer, a pessoa que nos acompanha em reportagem. Vive naquele país e preferencialmente tem diversos contactos permitindo-nos aceder a fontes de informação locais. Quão melhor for o nosso fixer, melhor será o nosso trabalho. Atualmente, nenhum jornalista vai para um local de conflito sem ter alguém local que trabalhe com ele. Normalmente, são pessoas que estão ligadas à comunicação social regional que, num país em conflito, veem o seu posto de trabalho em jogo. Por exemplo, aquando da fusão dos sete canais ucranianos num só, uma das pivots mais conhecidas perdeu o seu emprego tornando-se uma das fixers mais disputadas no país.
Porquê?
Era uma pessoa que tinha imensos contactos. Um exemplo prático do que estou a dizer: eu com o meu fixer ao chegar a uma barreira militar, um check point militar, tinha de me identificar, o meu fixer tinha de explicar quem eu era. Quem andava com ela não precisava disso porque ela chegava a uma barreira militar e os militares tiravam fotografias com ela. Portanto, a importância desta pessoa é fundamental, tanto em 2003 como em 2022.
Em Butcha cobriu um dos massacres mais violentos na Ucrânia. Em tempos bélicos, como é que conjuga o dever jornalístico de distanciamento dos factos com o impacto emocional que têm num repórter de guerra?
A objetividade é um mito no jornalismo. Tentamos alcançá-la, mas pomos sempre algo nosso em tudo o que fazemos. Aquilo que produzimos não deixa de ser o espelho da realidade que vemos, principalmente quando tem uma carga emocional maior. O que não significa que não tentemos na medida do que nos é possível objetivar a realidade que vemos. Se estou perante uma vala comum de onde foram retirados 200 corpos, não vou desatar a chorar, mas não vou deixar de dizer que dali foram retirados 200 corpos. Outro ponto é como isso mexe comigo. Para fazermos o trabalho com alguma objetividade temos sempre procurar ser imunes a realidades atrozes e violentas. Muitas das vezes é ao final do dia que temos alguma descarga emocional sobre aquilo que passamos. Há uma coisa que eu posso dizer: sempre que fui para zonas de conflito nunca voltei a mesma pessoa.
Voltaria lá?
Se me fosse lançado o desafio, tinha de equacionar as condições de segurança, mas em princípio sim.
Recentemente publicou o livro: “Estórias por Trás da História”. Tendo em conta os diversos conflitos que testemunhou, o que é que o levou a escrever sobre a Venezuela e não sobre um dos outros países?
Tem a ver com as muitas histórias que ficaram por contar, sobretudo dessa aventura que foi entrar na Venezuela numa altura em que o país estava praticamente fechado à imprensa internacional. Qualquer jornalista estrangeiro que aterrasse no aeroporto de Caracas, em 2019, era imediatamente deportado. O desafio que tinha era conseguir chegar à capital. Sabia à partida uma coisa: não podia viajar diretamente para o aeroporto de Caracas. A única forma de entrar na Venezuela era via Colômbia, aterrando no aeroporto de Bogotá, atravessando a savana colombiana e, depois, de barco com uma pessoa que já se encontrava à minha espera lá. À medida que fomos vivendo essa experiência, fui percebendo que havia uma série de histórias, que, não poderiam ser contadas em televisão, mas poderiam ser transcritas em livro.
Entrevistou Juan Guaidó num momento em que só a BBC o tinha feito. Como é que conseguiu esse furo jornalístico?
Através de contactos que estabeleci à chegada no país. Também me vali de um argumento que foi decisivo. A Venezuela tem diversas televisões, todas elas afetas ao regime, que só transmitem o que o regime quer que se veja. Isto significa que a oposição na Venezuela não tem voz nos medias de massa. Também os canais internacionais foram bloqueados, na sua maioria. Mas não bloquearam a RTP Internacional. Esse argumento convenceu o gabinete de Juan Guaidó a darmos a entrevista foi: “a entrevista vai ser vista na Venezuela, através da RTP Internacional”. E foi.
Tendo a entrevista sido vista pela audiência venezuelana, sente que existiu uma maior responsabilidade, principalmente por ter sido o segundo jornalista a consegui-lo?
Sim, sendo que isso agravou o nosso grau de exposição na Venezuela. Estávamos lá como turistas e, a partir desse dia, percebi que o nosso trabalho estava a ser monitorizado, quer lá, quer em Portugal pela embaixada da Venezuela. Houve vários jornalistas e pessoas da oposição que simplesmente desapareceram. Portanto, foi preciso ter algumas cautelas, mas conseguiu-se fazer tudo.
São esses os maiores desafios, de estar num cenário de guerra, o medo de estar num país diferente com um regime totalmente diferente?
São, mas o medo também ajuda. Mantém-nos despertos e atentos ao que está a acontecer à nossa volta.
Falemos agora do seu trabalho como pivot. Que características deve ter um pivot de um noticiário?
Primeiro tem de dominar a atualidade em toda a sua latitude, longitude e extensão. Deve também conseguir criar empatia com as pessoas que estão em casa, neste aspeto particular, a voz é fundamental. Não pode ser alguém cuja presença no ecrã provoque qualquer tipo de ruído, ora por ser muito bonito, muito feio, muito magro, muito gordo…
Manter-se a par da atualidade é, então, um dos desafios para os estudantes da área da comunicação?
Todos devem estar a par da atualidade. Não se trata de ler apenas os títulos, mas sim de saber enquadrar e explicar devidamente as notícias. Isso é fundamental. Se numa redação for pedido ao jornalista que escreva uma notícia sobre determinado assunto, o jornalista tem de ter um backup que permita enquadrar aquele tema. Toda e qualquer pessoa que tenha ambição ser jornalista seja de televisão, rádio, imprensa ou multimédia tem de ter um domínio perfeito da atualidade.
Como avalia o jornalismo que se faz hoje em Portugal, nomeadamente em televisão?
É um jornalismo editorialmente diferente em função dos canais que optarmos por ver. Há, no panorama televisivo português, canais que optaram por uma lógica macabramente sensacionalista. A aposta nessa marca, em certos canais, é cada vez maior. Há, também, quem consiga fazer jornalismo com seriedade, no entanto tendo alguma dificuldade em “embrulhar” o seu produto, que é o caso da RTP. Há um bocadinho de tudo, cabe ao espectador identificar-se mais com um ou outro. Está muito bem definido no panorama português o que é que cada um faz. Os espectadores sabem o que é que cada um tem para oferecer. Creio que todos nós temos um pouco de voyeurismo dentro de nós. Todos gostamos de ver imagens de um grande acidente, mas às vezes é preciso estabelecermos limites a esse voyeurismo.